Economia e mercado 15 Mai
Pessoas falsas com cookies falsos e contas falsas em redes sociais movendo seus cursores falsos, clicando em sites falsos lotados de conteúdo falso. Essa é a representação verdadeira da internet atual?
Para quem acredita na teoria da internet morta, sim. Para eles, a internet é dominada por robôs e os humanos já não existem no ambiente online.
Será que eu sou humano? E você?
Mas o que diz a teoria
A teoria da internet morta é uma teoria da conspiração criada na própria internet. Suas ideias circulam em fóruns há pouco mais de 10 anos e sua base segue bem o padrão de algumas outras teorias da conspiração.
De acordo com o texto manifesto da teoria, postado no fórum Agora Road’s Macintosh Cafe em 2021 pelo usuário IlluminatiPirate – algo como “Pirata Illuminati”, grande parte do conteúdo produzido por humanos na internet atualmente é gerado por robôs e com um único intuito: o controle mundial.
Em resumo, o manifesto afirma que boa parte da internet atual consiste na atividade de robôs, bots, gerando conteúdo sob a curadoria de um algoritmo sob o propósito de fazer com que as pessoas consumam determinados produtos e não acreditem em “verdades escancaradas”, como o avistamento de Ovnis, por exemplo.
Esse controle, como em toda boa teoria da conspiração, seria arquitetado por grandes empresas e governos – sendo o dos Estados Unidos um dos principais engajados em manipular toda a população mundial, responsáveis por contratar, secretamente, influenciadores para promover produtos que seguem uma determinada agenda cultural.
Mas colocando o pé no chão, quanto dessa teoria pode ser verdade?
A internet morreu?
Para basear seus argumentos, o Pirata cita os posts vazios nas redes sociais e a contínua repetição de tendências, falando como bots agem para manipular algoritmos e impulsionar determinados assuntos. Mas apesar do tom conspiracionista que permeia seu texto, muito dos tópicos abordados já são tratados como profecia.
Não é que a internet morreu, longe disso. Todo o conteúdo que nós produzimos aqui, incluindo esse texto, por exemplo, é produzido por humanos; eu mesmo conheço vários deles. Nossos leitores também existem – afinal, alguns comentários que lemos aqui são impossíveis de serem gerados por uma inteligência artificial.
Mas o fato é que grande parte da internet já é sim ocupada por robôs. Em 2016, a empresa de segurança cibernética Imperva emitiu um relatório afirmando que 52% do tráfego da web era de bots. Em 2021, a Barracuda – outra empresa de cibersegurança – atualizou essa porcentagem para 62%.
Então, por mais que 2/3 da população mundial tenha acesso a internet através de algum dispositivo, o tráfego online já é dominado por robôs; e eles estão sim querendo manipular as pessoas.
O início da decadência
Mas não é que seja um esquema de dominação ou manipulação mundial. Esses robôs servem aos interesses de várias pessoas e organizações, com múltiplos interesses.
Em uma analogia, seria como o mercado da publicidade, que está sempre tentando fazer com que você compre alguma coisa, seja o carro do ano, seja um celular novo. Mas esse mercado não serve a apenas uma empresa ou governo.
A teoria da internet morta faz uma conexão direta com alguns assuntos que estão em voga, da suposta morte da pesquisa do Google até o avanço das inteligências artificiais. E tudo isso também está misturado, de alguma forma.
Agentes de SEO interessados em manipular os resultados das pesquisas usam IA para gerar conteúdo sem sentido para sites falsos a fim de ganhar dinheiro. Pessoas mau intencionadas geram imagens mirabolantes para tentar quebrar a crença das pessoas no mundo virtual (e também ganhar dinheiro com engajamento).
A modernidade trouxe facilidades para produzir todo tipo de conteúdo sintético, e a tendência é que não pare por aqui.
Em um relatório emitido em 2022, a Europol afirma que até 2026, 90% do conteúdo online poderá ser sinteticamente gerado. Timothy Shoup, do Instituto para Estudos de Futuros, em Copenhague, na Dinamarca, estima que até 2030 mais de 99% do conteúdo na internet será gerado por IA.
E o caminho – de certa forma – já começou a ser traçado dessa maneira. Mais do que as pessoas, as máquinas já têm dificuldade de se identificarem e distinguirem o comportamento de um humano real e de um robô.
Em algum momento no passado, funcionários do YouTube temeram a chamada “The Inversion” – “a inversão” em tradução livre, onde seus sistemas começariam a ver bots como humanos e vice-versa.
Não à toa, empresas como Meta, Google e o próprio X (ex-Twitter) têm tentado aplicar políticas internas para exercer algum controle sobre os bots. Afinal, como conseguirão medir suas próprias estatísticas com precisão se os dados estão povoados com engajamento falso.
São pessoas falsas reagindo a conteúdos falsos gerados por contas falsas. É um teatro orquestrado com o objetivo de eleger alguém, bombar um artista ou simplesmente ganhar mais seguidores para aumentar o ego online. São mentiras que, contadas várias vezes, tentam virar verdade.
Afinal, o topo global em um serviço de streaming ou ganhar uma eleição em uma grande nação pode gerar muito mais do que apenas alguns likes em uma rede social.
Fugir da realidade não deve ser uma opção
Eu sei que todo esse discurso parece distópico e para a realidade de algumas décadas ou anos atrás, ele é. Mas já deixou de ser.
Como citado, a teoria da internet morta é uma teoria da conspiração, e como uma boa teoria desse tipo, ela nada mais é do que uma explicação simplória para um problema muito complexo. As coisas ruins não precisam de um grande vilão por trás para acontecer; as vezes, elas só acontecem.
A teoria busca explicar um problema real que já vem acontecendo há algum tempo, e só por conta disso, carrega uma porcentagem de verdade. Mas é preciso se manter grudado a realidade e raciocinar.
A internet a frente dos holofotes é sim controlada por grandes empresas donas das plataformas. O conteúdo postado tem sim ficado cada vez mais sintético, seguindo as orientações de um algoritmo que julga saber o que as pessoas querem, mas que segue as diretrizes de quem o controla.
Mas uma boa parte do conteúdo que você vê é gerado por humanos. As fotos e vídeos são reais. Alguns de nós pode estar passando por um processo de robotização, seguindo a onda do algoritmo, mas ainda somos humanos.
Você é o protagonista da sua vida, mas não é o protagonista do mundo inteiro – independente da fama que tenha. Os holofotes não estão virados para você. Não existe nenhuma organização mundial interessada diretamente no que você irá comprar ou consumir. Não existe um plano mirabolante de dominação, e se existisse, muito provavelmente você não seria um passo importante dele. Nem eu, nem você.
Se hoje o tráfego na web é majoritariamente direcionado por robôs, isso é apenas um reflexo da nossa realidade e de suas necessidades – sejam elas boas ou ruins. Mas se amanhã todo mundo decidir sair da internet, o sentido dela acaba.
Teorias como as da internet morta prosperam em ambientes de medo. A chegada da IA, por exemplo, tem colocado o emprego e consequentemente a subsistência de muitos em cheque – e isso é uma verdade; mas orientar o debate baseado em algo irracional, colocando a culpa em vilões únicos e malvados, está mais para coisa de filme de super-herói.
E se for para medir tudo com essa mesma régua, talvez o futuro seja melhor. Nele, poderemos estar buscando encontrar pessoas reais e autenticas fora da internet, sem a influência de algoritmos, e as inteligências artificiais, de tanto se retroalimentar, passaram a ser desinteressantes para os olhos humanos.
Mas independente do futuro, nós ainda temos o controle físico da internet. Qualquer coisa, é só tirar da tomada.
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